Divagando sobre poesias

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Foto: Aaron Burden/Unsplash.

Por Tobias Goulão

“Mas será que vivo por inteiro e será que isso basta?

Nunca bastou e muito menos agora.

Escolho excluindo porque não há outro jeito,

mas o que rejeito é mais numeroso,

mais denso, mais insistente do que nunca.

À custa de incontáveis perdas — um poeminha, um suspiro.

Ao chamado ruidoso respondo com um sussurro.

O quanto silêncio, isso não direi.”

Wisława Szymborska, trecho do poema “Um grande número”

Depois da última obra poética lida, Poemas de Wisława Szymborska, comecei a refletir naquilo que os poemas chamam atenção. O porquê de ler poesias. De tantas já lidas, decoradas e esquecidas, entre autores que atravessam todo o mundo, uma hora alguma exposição sobre a razão dos versos deveria formulada. Para tal, nada melhor que lembrar dos versos lidos ao acaso, lidos enquanto estava espremido em um ônibus, lidos quando tomado pela melancolia, procurando encontrar algo que descrevesse aquela mórbida sensação. Foi após esse exercício mental que dispus esse escrito e ordenei o motivo da estima pelos versos.

O que vejo com grande interesse na poesia é a forma como os temas são tratados. O poeta abre uma possibilidade de ver coisas, de pensar situações, que pela escrita nos compra ou repele. Um poema do qual gostamos, um poeta com quem nos identificamos permite perceber que determinados sentimentos, colocados ali de maneira ainda não vista, não são isolados. Mesmo que as alegorias, símbolos e figuras de linguagem permitam diferentes sensações sobre o escrito, aquele poema de amor ou solidão, sobre o conhecimento ou melancolia, sobre os homens e Deus, tocam todos que alguma vez meditou nesses temas. É uma forma do saber se oferecer a nós.

O poeta é quem oferece esse mundo de possibilidades aos demais. Possibilidades que, pela linguagem, é apenas da poesia. Expõe contradições, mostra cantos ocultos do saber. Há forte metafísica na obra de alguns poetas, enquanto outros tem em seu escrever o reflexo de suas vidas, as durezas, tristezas e inquietações da alma. Entre alguns temas comuns a inúmeros (não seriam todos?), encontramos o amor. Mesmo que alguns sejam apenas para zombar, humilhar, desdenhar, outros, entretanto, têm nesse sentimento a sua força motriz e apelo de satisfação. Em alguns o ato da escrita é como um parto, no qual após inúmeros sofrimentos, uma criatura nova vem ao mundo. Já outros, técnicos e frios, tem nesse ofício uma atividade como outra qualquer.

Os mais interessantes são aqueles dos versos trágicos, tristes, tão sentidos como a letra de um fado chorado ao som da guitarra. Há autores que encharcam as páginas com suas inúmeras angústias, com os tristes dias de solidão passados em frente sua máquina/caneta. Alguns colocam para fora de si as mais íntimas e verdadeiras figuras que em sua alma tomavam forma, se desenvolvendo como parasitas se alimentando de suas energias. Uns são como profetas, trazem várias visões, outros nos dizem sobre o Paraíso, alguns falam da vida em casa e outros das desgraças da rua. O importante é que falam, ou melhor, escrevem, em versos que nos levam até a dividir as pessoas entre quem gosta ou não de poesia.

Em escritos de grande parte dos poetas lemos versos que procuram fazer algo como uma imitação a realidade; já em outros, a obra parece querer tomar o ser humano pelas mãos ensinando o caminho para a transcendência e apontando para seu estado místico. Na perspectiva dessas capacidades poéticas, poderíamos fazer uso do que foi escrito pelo poeta Adalberto de Queiroz, que assinala o ponto comum entre as criações poéticas justamente na linguagem, a região onde diferentes tipos de poemas se encontram. E assim, escreveu que, para a poesia,

“a linguagem e de um requisito fundamental – o silêncio interior, uma espécie de fuga que é um enfrentar-se, uma subida que é um mergulho em si mesmo e nas coisas da alma. Talvez por isso o mesmo Heidegger tenha dito que ‘a poesia é nomear o que institui o ser e a essência de todas as coisas’. Similar condição do pensamento de Vilém Flusser para quem antes de entendermos o perfume da rosa ou o sabor da maçã foi preciso que alguém as nomeasse – doassem vida imaterial a algo que se vê…”.

O saber do poeta, sua criação e elevação, são meio de dar sentido, de criar e transcender, e para comunicar tais operações, é imprescindível a linguagem, primeiro falada e depois escrita. E graças a isso que os poetas de todo o mundo, independente do século, são acessíveis. Sorte a nossa que o milagre da escrita nos retirou da configuração do mundo que estava no primário histórico. Hoje enfrentamos os versos sobre a noite escura, assim como conhecemos o fogo invisível, os ditos sobre Tróia, Roma e o inferno. Até os Gulags são lamentados pelos poetas, enquanto outros observam a psicologia dos vencidos, o que, em algum nível, nos leva a conhecer até a vida de cão de inúmeros desgraçados consumidos pelo álcool. O poema é o nomear de muito daquilo que ainda faltava um nome.

Para que serve tudo isso? Bom, como muito do que cultivamos nessa vida, é para nada que serve. Não há instrumentalização (o máximo aceitável seria os versos trocados entre amantes enamorados). Digo isso repetindo Bruno Tolentino, poeta carioca falecido em 2007. Disse com todas as letras, mas lembrou a importância do inútil:

“Espero que não sirva para nada, né. Só faltava essa. Esse negócio de tudo servir para alguma coisa, acaba tudo sendo instrumentalizado. Serve para nada, não. Ela é uma provocação, é uma oportunidade que a pessoa tem, que o espírito tem para se manter a um nível sempre mais elevado e procurar uma expressão mais justa para aquilo que não lhe ocorreria normalmente”. […]

“Então, a poesia serve para elevar o seu nível, como de resto há também a filosofia, todas essas coisas que não são de massa, publicação de massa, não tem um sentido de mobilização da linguagem comunicativa, a linguagem de jornal, por exemplo. Isso serve para alguma coisa, porque se eu não souber o que está acontecendo hoje, enfim, alguma coisa estará me faltando. Mas a poesia não entra aí nessa categoria. Ela já pertence à vida reflexiva, a vida contemplativa do espírito.” […]

“A poesia é um modo de uso da linguagem particularmente exigente, muito exigente. Exigente com a linguagem e com sua relação com ela.”

Sobre o problema da linguagem poética, Tolentino ainda ressalta o que deve ser a sua função: comunicar. Não é algo simplório, uma comunicação corriqueira e comum, mas também não deve ser algo arcano, que se coloca em forma alquímica cujo significado foge a todos. Sobre tal situação ele fala que:

“Fernando Pessoa definia a poesia como a música que se faz com as idéias. […] você tem que tornar aquilo mais perceptível, aquilo que antes não era muito perceptível, nem para você. Você formula aquilo, no máximo de tensão de linguagem possível. O máximo de tensão de linguagem possível sem perder a relação com a linguagem comum, porque se você se afastar demais, aí você já entrou em órbita, já não está mais fazendo poesia, está fazendo uma espécie de alquimia.” […]

E no fim ainda brinca com o tipo de linguagem codificada que fica restrita aos iniciados de algum grupo seleto que vive a discutir, em uma espécie de canibalismo tribal, tudo que é produzido entre eles e somente isso:

“O que você pede a um texto de prosa é inteligibilidade, a não ser que seja, naturalmente, filosofia francesa contemporânea, aí, evidentemente, se tiver inteligibilidade você será expulso do grêmio.”

Para longe das extrapolações e nos aproximando do que, de fato, a linguagem opera entre os homens, a possibilidade de comunicação, temos com esse testemunho de Bruno Tolentino a boa síntese daquilo que podemos justificar como sendo a funcionalidade da poesia, que “serve para nada. Serve para simplificar a vida, e ao mesmo tempo que eleva o espírito. E qualquer outra explicação é uma presunção.”

E, por fim, cabe salientar sobre o engrandecimento do espírito, que as obras dos grandes poetas, dos homens de expressão inigualáveis, são parte do nosso crescimento, pois “ler autores clássicos, como Shakespeare, Fernando Pessoa, William Wordsworth e T.S. Eliot, estimula a mente”. Onde ainda vemos a posição de que “a poesia não é só uma questão de estilo. A descrição profunda de experiências acrescenta elementos emocionais e biográficos ao conhecimento cognitivo que já possuímos de nossas lembranças”, detalhe acrescentado por Marcelo Vinícius em uma reportagem comentando sobre como poesia é melhor que as obras de autoajuda.

Aos que ficam ao lado dos poetas, convido-os para que leiam um soneto, o declame em voz alta, assim que encerrar esse breve escrito. Se possível leia dois ou até três. Encontre-se com um poeta e apreenda aquilo que ele versificou, escute a voz daquela alma, talvez até morta, mas que ainda nos fala por meio da imortalidade das palavras escritas. E também a voz da sua alma que ecoará junto com a declamação. Aos que não costumam se aventurar em decifrar e entender alguns versos, vejam isso como um desafio. O importante é entender e declamar alguns poemas, escutar esses escritores, trazer algumas obras na memória ou, ao menos lembrar de sua existência e visitar quando for possível as páginas onde estão cravados.


Referências

Entrevista de Bruno Tolentino no programa “Sempre um Papo” 08-08-2006. In: https://youtu.be/bdyNofx1d68

Adalberto de Queiroz. Ler Poesia pra quê? (e por quê?) – parte 2. In: https://www.jornalopcao.com.br/opcao-cultural/destarte/ler-poesia-pra-que-e-por-que-parte-2-105764/

Marcelo Vinícius. Ler Poesia é mais útil para o cérebro que ler autoajuda, dizem cientistas. In: http://lounge.obviousmag.org/cafe_nao_te_deixa_mais_cult/2014/01/ler-poesia-e-mais-util-para-o-cerebro-que-livros-de-autoajuda-dizem-cientistas.html

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