Por Tiago Oliveira.
O Brasil não é para amadores. Essa afirmativa é ponto pacífico entre cientistas políticos e jornalistas com estatura intelectual, e também entre os cientistas políticos caipiras de botequim, que são maioria no país. Particularmente me enquadro entre os dois, um adolescente intelectual em plena fase de crescimento no auge dos meus 28 anos – ao menos tenho a justificativa de não ser precoce, tardio talvez, antes tarde do que nunca.
Desde há muito no Brasil tem-se a convicção de que o Estado deveria ser governado por uma agenda política supraideológica e tecnocrata, desde os primórdios da república golpista fundada em 1889. Entretanto a quase totalidade da intelectualidade, da mídia e dos cientistas políticos de botequim – que replicam tudo o que veem e ouvem dos nobres e competentes jornalistas brasileiros – não fazem a menor ideia do que seja uma ideologia e em que campo ela atua.
Nosso querido professor Olavo de Carvalho nos diz que a estrutura do pensamento ideológico é caracterizada pela compressão forçada da realidade para dentro de uma única visão, portanto pela recusa examinar os fatos e aspectos que não caibam no padrão escolhido. Traduzindo: uma ideologia se funda em uma vontade de desfazer a distinção entre aparência e realidade, de forma que a partir ações organizadas não seja possível mais distingui-las, embotando a mente da população para que suas ações se tornem previsíveis e manipuláveis na direção desejada.
Esse fetiche da elite brasileira por uma sociedade governada por técnicos iluminados da ciência se funda no pensamento de Auguste Comte, o francês maluco que propôs a “ciência” do Positivismo, esse cara sustentava que a ciência deveria se preocupar apenas com causas observáveis que sejam conhecidas pela experiência direta. Comte idealizou uma reconstrução da sociedade francesa em particular e para as sociedades humanas em geral, com base em seu ponto de vista. Ele clamava pelo estabelecimento de uma “Religião da Humanidade” que abandonaria a fé e o dogma, em favor de um embasamento científico.
Dito isso, eu preciso esclarecer a esses “iluminados” que a atividade acadêmica e a ciência política de análise dos fatos poderia teoricamente ser despida de ideologia por se tratar de apenas relatar os fatos, mas na prática isso não é possível. Não existe atividade política sem ideologia, pois se tratam de ações da vontade segundo uma ideia, uma visão de mundo. Portanto, não existe essa idiotice de política sem ideologia como querem embutir na cabeça das pessoas.
O tecnicismo é então uma ideologia, e recorrendo novamente a Olavo de Carvalho, “não só é uma ideologia, mas é mesmo uma das mais enganosas, já que a maior parte de seus seguidores lhe ignora totalmente as origens e por isso mesmo dificilmente se encontra entre eles um manipulador consciente: são praticamente todos vítimas da ilusão que propagam”.
Os fatos que sucederam recentemente o surpreendente pedido de demissão do ex-juiz, ex-ministro, e agora político Sergio Moro – um juiz técnico que cumpriu a lei e desbaratou a cúpula do maior partido/quadrilha da história nacional e por isso mesmo foi catapultado ao panteão de heróis da nação – são um bom reflexo deste panorama. O que muitos não sabiam, incluso a mim, e ainda não sabem, são as convicções políticas do ex-ministro já que a olhos leigos ele deixou muito pouca ou quase nenhuma pista do que acredita.
Para aprofundar no assunto é preciso recorrer a algumas teorias jurídicas inerentes ao ofício de juiz que Moro ocupava à época da Operação Lava-Jato. O primeiro deles é o princípio da imparcialidade do juiz, onde o magistrado deve colocar-se entre as partes e acima delas para exercer de forma justa sua função dentro do processo; a imparcialidade é pressuposto jurídico para que o processo seja válido, super et inter partes. O juiz não pode atuar em qualquer que seja o litígio, seja entre particulares ou entre o Estado e particulares, como no caso da Operação Lava-Jato, se não estiver de pleno acordo com este princípio.
Existe também o princípio do impulso oficial em que compete ao juiz mover o processo de fase em fase até o exaurimento do mesmo, sem contar o princípio da persuasão racional do juiz e o da exigência de motivação das decisões judiciais.
Esclarecido um pouco de juridiquês, vale lembrar que o juiz não pode instaurar um processo de ofício, ele precisa ser provocado, e falando especificamente do processo penal deve haver um inquérito policial e uma denúncia do Ministério Público anteriores ao processo. Sim, parece óbvio, mas é importante sempre relembrar porque o óbvio precisa ser dito para não ser esquecido, e nesses tempos isso tem acontecido bastante.
Está claro que o mérito pela prisão de vários corruptos nos últimos anos não se resume a uma sentença de Sérgio Moro como também aos agentes da Polícia Federal e procuradores do Ministério Público Federal que atuaram no processo, muito embora devemos lembrar que vivendo no país que vivemos fazer cumprir a lei já é uma qualidade.
Adentrando nas entranhas do pensamento de Sergio Moro pode-se encontrar em sua tese de doutorado algumas pistas sobre seu posicionamento político.
Para começar, Moro diz em sua tese que quase não se viu regimes democráticos antes do séc. XX, excetuando o regime democrático original instaurado por Clístenes na Grécia Antiga, onde o poder era distribuído por 140 demos (distritos) que governavam Atenas, e a República Romana antes do Império e as repúblicas italianas do séc. XII e XIII. O que dizer então das monarquias parlamentaristas que começaram a surgir no fim do século XVIII e início do século XIX (Império Brasileiro incluso), e a fundação dos Estados Unidos da América no séc. XVIII?
Moro diz abertamente que concorda com o ativismo judicial – a atuação do Poder Judiciário para interferir em decisões de outros poderes – quando tece elogios à Suprema Corte Americana regida por Warren E. Burger no caso “Roe vs. Wade” em 1973 que reconheceu o direto da mãe em matar a vida que carrega até o terceiro mês de gestação e ainda que diz que a Corte fez bem porque “satisfez em parte as duas correntes absolutamente opostas sobre o tema”. Moro elogia o ativismo da Suprema Corte que arrogou para si a autoridade de decidir sobre tema não celebrado na constituição americana ou qualquer outra lei infraconstitucional daquele país, claro aceno positivo ao ativismo judicial e também claro, embora não explícito, aceno positivo ao aborto, o que vai completamente na contramão da agenda política do governo ao qual serviu recentemente.
O ex-ministro diz que a “democracia de ‘baixa intensidade’, como o Brasil (…) exige alternância de postura de autocontenção com a de ativismo”. Você pode pensar “ah, mas ele era Ministro da Justiça, que diferença isso faz?”. Caríssimo leitor, o homem ocupava um cargo político e de confiança em um governo com agenda política conservadora, e como pode alguém ocupar um cargo em qualquer corporação, seja pública ou privada, se não acredita nas práticas políticas da instituição? Levanta suspeitas.
Bolsonaro pode não ser, na sua opinião, um grande presidente, mas é o que há para hoje, há quem diga que Bolsonaro está mais para um pesticida do que um adubo para o Estado Brasileiro. Bom, posso não ser um agrônomo, mas penso que não é possível tratar qualquer planta apenas com adubo e sem defensivos agrícolas.
Em sua coletiva melancólica de despedida, Sergio Moro apresentou várias ilações, depois “de bom grado e com a melhor das intenções” forneceu à Globo o registro de conversas privadas entre ele e o Presidente da República, vejam só, à mesma Globo que há meses atrás soltava em rede nacional conversas privadas entre Moro e o procurador Deltan Dallangol supondo que os dois haviam cometido crime no julgamento do caso de Lula e seus asseclas. Me pareceu muito mais um discurso político e o modus operandi que Glenn Greenwald fez com o próprio, para criar um fato jurídico com a função de tentar derrubar o governo.
Moro me pareceu muito mais uma pessoa, que nas palavras de Olavo de Carvalho, “julga tudo em função de si mesma, não reparando em nada que esteja fora ou além dela”, ao dizer que que precisava zelar de sua biografia e nada mais (até disse que está à disposição do país quando necessário, mas desde que não seja manchada sua biografia, é claro).
O ex-ministro tem sua ideologia sim, é um tecnocrata, progressista (pró-aborto, desarmamentista) e um tanto quanto autoritário (ativista judicial). E não, não penso que a investida dele irá derrubar o governo, como também acredito que em 2022 ele irá se candidatar ou pelo menos apoiar um candidato da new left, mas isso é o que eu penso, você tire as conclusões que quiser, sua consciência é seu guia, só nos resta esperar os próximos capítulos desse hospício chamado de política brasileira.